“O que se diz ao editor a propósito de poemas”, de João Cabral de Melo Neto

Neste episódio do programa "Voz" escutamos o poema de João Cabral de Melo Neto dito pelo músico e compositor Sérgio Godinho. Um encontro com a poesia para ver, ouvir e ler aqui.

“O que se diz ao editor a propósito de poemas”

Eis mais um livro (fio que o último)
de um incurável pernambucano;
se programam ainda publicá-lo,
digam-me, que com pouco o embalsamo.

E preciso logo embalsamá-lo:
enquanto ele me conviva, vivo,
está sujeito a cortes, enxertos:
terminará amputado do fígado,

terminará ganhando outro pâncreas;
e se o pulmão não pode outro estilo
(esta dicção de tosse e gagueira),
me esgota, vivo em mim, livro-umbigo.

Poema nenhum se autonomiza
no primeiro ditar-se, esboçado,
nem no construí-lo, nem no passar-se
a limpo do datilografá-lo.

Um poema é o que há de mais instável:
ele se multiplica e divide,
se pratica as quatro operações
enquanto em nós e de nós existe.

Um poema é sempre, como um câncer:
que química, cobalto, indivíduo
parou os pés desse potro solto?
Só o mumificá-lo, pô-lo em livro.

João Cabral de Melo Neto


Temas

Ficha Técnica

  • Título: "Voz"
  • Tipologia: Programa de Poesia
  • Autoria: Produções Fictícias
  • Produção: até ao Fim do Mundo
  • Ano: 2005