“O Retrato”, de João de Lemos

O Retrato (excerto)

bem vejo: Fiel, exacto
faz a glória do pintor
mas não quero esse retrato
porque eu tenho outro melhor

vejo aqui teus olhos belos
tua boca teus cabelos
teu colo teu braço e mão
vejo

mas vejo que em tudo
por mais que as tintas lhe estudo
há sempre a mesma expressão

de ti longe quero ver-te
como estando ao pé de ti
quero as mil graças colher-te
não uma só como aqui

sei deste gesto o atractivo
falta porém sucessivo
o ferver do teu crisol

tu, seguindo o pensamento
pões de momento a momento um novo raio de sol
quero ver-te irada, afável, grata, ingrata,
em riso, em dor.

qual és na luz variável
do teu constante fulgor

quero-te ao piano, à janela
fitando à noite uma estrela
no baile, a ler,
a rezar, sentada ,                                                                                                                     em pé, encostada,
desta cor daquela ornada,
ora ouvindo ora a falar

tal te quero
e retratar-te não sabe ninguém assim
já vês o que pode a arte
isto é pouco para mim
por lembrar-me? não preciso

podes levar-me o juízo
mas a memória essa não!

não quero pois o retrato
tenho melhor mais exacto
tenho-o no meu coração

João de Lemos