Os painéis de Almada Negreiros que afrontaram o Estado Novo

Os senhores do regime queriam gares decoradas com painéis espetaculares e Almada fez o seu espetáculo. Com irreverência e sem cedências a ideologias nacionalistas. Houve vontade de destruir as monumentais pinturas, narrativas assentes em cores vibrantes e rigorosa geometria, a contar histórias de marinheiros, varinas e saltimbancos pobres. Imagens demasiado reais para acolher turistas de 1.ª classe. Mas é à beira-Tejo que permanecem, a dar testemunho do invulgar talento do artista autodidata, pioneiro do modernismo português.

Os icónicos painéis que incomodaram o regime, contêm a essência do “artista total” que foi Almada Negreiros, eterno transgressor e experimentador de (quase) todas as artes. A obra resultou de uma encomenda, mas tudo o que ali se vê é exclusivo da intensa paleta do pintor, das proporções harmoniosas do desenhador, do talento do cenógrafo, da narrativa poética do escritor.

Porque nem mesmo nos temas que servem de inspiração às enormes pinturas suspensas nas paredes das duas gares marítimas, Duarte Pacheco, o então poderoso ministro das Obras Públicas de Salazar, teve palavra a dizer. Almada, antecipou-se e, quando em 1943 começou a trabalhar nos frescos de Alcântara, ajustou o seu tom provocador às histórias que se propôs contar.

Escolheu a Nau Catrineta, lengalenga popular que falava das desventuras dos marinheiros numa travessia marítima para evocar os Descobrimentos, ilustrou o milagre de D. Fuas Roupinho salvo à beira do abismo, retratou o Portugal rústico e a Lisboa ribeirinha, com varinas de corpos robustos e pés descalços, pescadores e marinheiros em primeiro plano.

Pormenor de painel da Gare Marítima de Alcântara
Pormenor de painel da Gare Marítima de Alcântara
Pormenor de painel da Gare Marítima de Alcântara
Pormenor de painel da Gare Marítima de Alcântara
Pormenor de painel da Gare Marítima de Alcântara
Pormenor de painel da Gare Marítima de Alcântara
Pormenor de painel da Gare Marítima de Alcântara

As pinturas, destinadas a receber ilustres viajantes estrangeiros no novíssimo cais de Lisboa, foram mal acolhidas pelo ministro. “Uns mamarrachos”, terá dito, zangado, Duarte Pacheco, que não se deixou impressionar com a firmeza da cor e a plasticidade do movimento das enormes ilustrações. O país retratado com modernismo e realismo social a mais, não servia o figurino da política cultural vigente.

O artista arriscou perder a segunda parte da encomenda. Não tivesse António Ferro, diretor do Secretariado Nacional da Propaganda, que com ele já trabalhara noutros projetos – nomeadamente na criação da revista Orpheu -, garantido a Oliveira Salazar que aquela era obra de inquestionável qualidade e o arquiteto Porfírio Pardal Monteiro, autor das duas gares marítimas, insistido em manter esta colaboração, e provavelmente, seria outro pintor a concluir o trabalho.

Almada não se deixou intimidar, muito menos limitar no seu processo criativo por ideologias fascistas ou mecanismos de propaganda. Aqui, “no extremo oposto do cais” foi mais ousado no traço e na narrativa. Se em Alcântara ainda existia alguma ligação temática à História de Portugal, na Rocha do Conde de Óbidos a “perspetiva vai ser colocada nos que sofrem”, no drama dos que têm de partir para fugir à miséria, nos saltimbancos que pedem esmola. Cenas reais da vida que acontecia ali mesmo, no cais.

Pormenor de painel da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos
Pormenor de painel da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos
Pormenor de painel da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos
Pormenor de painel da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos
Pormenor de painel da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos
Pormenor de painel da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos
Pormenor de painel da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos
Pormenor de painel da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos
Pormenor de painel da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos

Estes painéis afrontaram ainda mais o regime, a tal ponto que a sua destruição chegou a ser sugerida. Coube ao diretor do Museu de Arte Antiga, João Couto, convencer os ministros de Salazar que aquela obra “era o melhor cartão de visita” que Lisboa podia ter no seu ambicioso e moderno “cais da Europa”.

Sobre este último trabalho que tanta polémica gerou, diria Almada Negreiros mais tarde que nunca tinha feito nada que mais se orgulhasse e “obra que fosse mais sua”. O facto de ter participado nesta e noutras obras públicas e em exposições promovidas pelo Estado Novo, jamais o transformaram num artista do regime. Fazia-o porque tinha uma família a seu sustento e não havia outro empregador. E também para ter público para a sua arte, para mostrar a sua modernidade. Almada fazia assim o seu espetáculo, único no século XX português, como aqui nos é apresentado por Mariana Pinto dos Santos.

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Ficha Técnica

  • Título: Visita Guiada - Pintura de Almada Negreiros nas Gares Marítimas de Alcântara e da Rocha Conde de Óbidos
  • Tipologia: Extrato de Programa Cultural
  • Autoria: Paula Moura Pinheiro
  • Produção: RTP
  • Ano: 2017