Aqueduto das Águas Livres e a inspiração do Tratado de Vitrúvio
Desde o tempo dos romanos que a água potável era um bem escasso em Lisboa, mas o problema agravou-se quando esta se tornou a capital de um império. No século XVIII, D. João V incluiu na sua política de opulência uma solução monumental para abastecer a cidade: um gigantesco aqueduto inspirado no Tratado de Vitrúvio. A icónica arcaria sobre o vale de Alcântara é uma parte dessa complexa obra de arte, engenharia e arquitetura com estilos definidos entre o clássico e o barroco.
O aqueduto que durante duzentos anos deu “águas livres” a Lisboa e lhe recortou a paisagem no vale de Alcântara com 21 arcos de volta perfeita e 14 arcos centrais em ogiva, veio também acabar com as zaragatas de fazer correr sangue à volta dos chafarizes medievais e a regulamentação sobre a sua serventia. Lutavam os lisboetas pelo precioso líquido que faltava à cidade do reino mais rico da Europa, que desde os Descobrimentos estava a crescer em população. O que havia para consumo vinha “exclusivamente de poços, de fontes e da chuva acumulada em cisternas”. No entanto, apesar dos raros e contidos hábitos de higiene, a água potável não era suficiente para as exigências dos 150 mil habitantes da capital.
Foi este o cenário que levou D. João V a encomendar a construção de uma obra de utilidade pública, que contribuísse para a modernização da própria cidade, porém, revestida de uma estética à altura do seu reinado. Os cofres estavam mais cheios com o ouro e os diamantes acabados de descobrir no Brasil, que lhe possibilitaram a concretização de uma política de opulência, a exemplo do que em França fazia Luís XIV, o rei Sol. Mas a riqueza do império não financia a totalidade do projeto e, durante mais de setenta anos, é cobrado à população um imposto adicional, apropriadamente chamado o Real de Água.
Erguer um aqueduto “único no mundo”
A água teria de ser recolhida e transportada até ao destino através de um sistema gravítico com passagem por aquedutos secundários e galerias, era um projeto difícil de concretizar, a necessitar de mãos experientes. D. João V escolheu os melhores arquitetos e engenheiros, com provas dadas noutras obras, que tinham a vantagem de conhecer e saber interpretar gostos e exigências reais num aqueduto de dimensões gigantescas.
Manuel da Maia, o engenheiro português envolvido depois na reconstrução da Baixa Pombalina, o italiano António Canevari (rapidamente afastado do projeto) e o alemão João Francisco Ludovice, ligado à construção do Convento de Mafra, foram os primeiros autores da ambiciosa obra hidráulica, que iria ligar 58 nascentes do concelho de Sintra a Lisboa e levaria esse bem imprescindível à zona ocidental da cidade, onde viviam o rei e o cardeal patriarca.
Pouco havia a inventar, já que os romanos, os maiores especialistas na construção de aquedutos, tinham deixado testemunhos vários espalhados por Portugal e, mais do que isso, um tratado com dezoito séculos ao qual os arquitetos voltavam sempre em busca de inspiração para as suas construções clássicas, o Tratado de Vitrúvio. Foram estas páginas da Antiguidade Clássica, mais desenhos, maquetas e plantas de aquedutos da cidade de Roma, consultadas para desenhar o aqueduto, peça resistente ao grande terramoto, admirado desde logo por pintores e viajantes como obra de arte no seu emblemático troço, sobre o vale de Alcântara.
Aqui, nestes 941 metros, está o maior arco do mundo com mais de 65 metros de altura e 28 de largura, uma aventura arquitetónica de Custódio Vieira, sucessor de Manuel da Maia, que arrisca contrariar todos os exemplos deixados pelos romanos para construir uma singular arcaria em pedra, a desafiar a gravidade.
A presença do Barroco
O perfil clássico do gigantesco aqueduto iniciado em 1732 e terminado em 1799, recebe ainda apontamentos do barroco, encomendados a Carlos Mardel. O arquiteto húngaro acrescenta elementos decorativos no “conjunto urbano do aqueduto”, com pequenas claraboias que conferem a estética sofisticada pretendida pelo rei. Da intervenção resulta ainda o passeio público ao longo dos grandes arcos, por onde “se chegava a Monsanto a pé ou de burro” e andou uma história de terror, protagonizada por um jovem galego que lançava as suas vítimas dali de cima, a simular uma vaga de suicídios.
É o mesmo troço que percorremos com Bárbara Bruno, neste excerto do programa Visita Guiada. A historiadora conduz-nos pelos antigos caminhos da água, que no final era armazenada no reservatório das Amoreiras (também da autoria de Mardel e completado por Reinaldo dos Santos) de onde partiam galerias subterrâneas que serviam os novos chafarizes. Símbolo de Lisboa, motor do seu crescimento, o aqueduto das Águas Livres tem, nada mais nada menos, do que 58 quilómetros no total. Uma obra ambiciosa, que nasceu para abastecer de água uma cidade e cumprir a visão de um rei.
Ficha Técnica
- Título: Visita Guiada - Aqueduto das Águas Livres
- Tipologia: Extrato de Programa Cultural
- Autoria: Paula Moura Pinheiro
- Produção: RTP
- Ano: 2018