“Um rio te espera”, de Eugénio de Andrade
Neste episódio do programa "Voz" escutamos o poema de Eugénio de Andrade dito pelo fadista Camané. Um encontro com a poesia para ver, ouvir e ler aqui.
“Um rio te espera”
Estás só, e é de noite,
na cidade aberta ao vento leste.
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, ó abandonado.
Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passam os barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.
Por um momento esqueces
a cidade e o seu comércio de fantasmas,
a multidão atarefada em construir
pequenos ataúdes para o desejo,
a cidade onde cães devoram,
com extrema piedade,
crianças cintilantes
e despidas.
Olhas o rio
como se fora o leito
da tua infância:
lembra-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar,
lembras-te da tua mãe
que te esperava
com os olhos molhados de alegria.
Olhas a água, a ponte,
os candeeiros,
e outra vez a água;
a água;
água ou bosque;
sombra pura
nos grandes dias de verão.
Estás só.
Desolado e só.
E é de noite.
Eugénio de Andrade
Temas
Ficha Técnica
- Título: "Voz"
- Tipologia: Programa de Poesia
- Autoria: Produções Fictícias
- Produção: até ao Fim do Mundo
- Ano: 2005