Kuhn sobre a racionalidade e a objetividade científicas
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Thomas Kuhn desafiou a visão de Karl Popper sobre a ciência como uma atividade crítica e lógica, argumentando que esta abordagem ignora o comportamento real dos cientistas ao longo da história. Segundo Kuhn, a ciência desenvolve-se em períodos de estabilidade, a ciência normal, e em períodos críticos, marcados por crises e mudanças de paradigma, a ciência extraordinária.
Kuhn considera que Popper, ao caracterizar a ciência como uma atividade fundamentalmente crítica, se baseou no que ocorre em algumas figuras e períodos excecionais da ciência, sem ter em conta toda a sua história. Há períodos excecionais, reconhece Kuhn, em que os cientistas foram realmente críticos em relação às teorias anteriores, pondo-as em causa e acabando por abandoná-las. Considera, todavia, enganador caracterizar a ciência com base nesses casos excecionais e procura mostrar que, em geral, os cientistas estão longe de ser críticos, pois dedicam a maior parte do seu tempo a buscar novas aplicações para o que já se aceita, em vez de tentarem refutar teorias e substituí-las por outras.
Para Kuhn não é correto partir do princípio que a ciência deve obedecer a uma dada lógica, como faz Popper. Precisamos de olhar antes para o próprio comportamento dos cientistas ao longo da história da ciência, percebendo como é o seu quotidiano e a comunidade científica funciona. Assim, em vez da abordagem seletiva, não-histórica e estritamente lógica de Popper, Kuhn defende uma abordagem compreensiva, histórica, e sociológica da ciência. Esta é uma abordagem que Kuhn diz ser meramente descritiva, isto é, que se limita a descrever o que os cientistas realmente fazem e não normativa, como a de Popper, a qual se centra no que é suposto os cientistas fazerem.
Olhando com atenção para a história da ciência e para aquilo que os cientistas fazem no seu dia-a-dia, podemos encontrar duas formas proceder, que Kuhn designa de ciência normal e ciência extraordinária.
Ciência normal e paradigma
Como o próprio nome indica, a ciência normal é que se verifica na maior parte do tempo, estendendo-se por largas décadas ou mesmo séculos. Os períodos de ciência normal caracterizam-se por uma grande estabilidade e consenso, tanto no que diz respeito às crenças e valores partilhados pelos cientistas, como aos métodos adotados e ao tipo de instrumentos usados. Isto significa, na linguagem de Kuhn, que a ciência normal se desenvolve no interior de um dado paradigma que enquadra toda a atividade científica desse período. O paradigma não é para ser posto em causa pelos cientistas, dado ser ele que determina o que deve ou não ser investigado, como pode essa investigação ser feita e o que conta ou não como resultado cientificamente válido. Assim, a astronomia tal como é encarada no interior do paradigma aristotélico é diferente da astronomia que se desenvolve no contexto do paradigma copernicano.
Os cientistas são, desde jovens, ensinados e treinados no seio do paradigma em vigor, de modo a poderem desenvolvê-lo. Deste modo, a ciência normal avança num processo cumulativo de novas descobertas que visam ampliar a eficácia e a abrangência do paradigma. Isto significa que durante a maior parte da história da ciência, os cientistas obedecem ao paradigma vigente, resolvendo os enigmas que vão surgindo sem alguma vez tentarem refutar seja o que for.
Só quando, ao fim de muito tempo, os cientistas se veem confrontados com a acumulação anomalias, isto é, com casos persistentes a que o paradigma não consegue responder de forma satisfatória, é que a ciência entra em crise e o paradigma começa a ser posto em causa.
Ciência extraordinária e revolução científica
A crise do paradigma leva a que ideias diferentes surjam, dando então lugar a um extraordinário, intenso e conturbado, mas relativamente curto, período crítico de confronto aberto de teorias rivais, em que deixa de haver um paradigma. É um período de ciência extraordinária. Este período termina com uma revolução científica, quando uma nova teoria prevalece sobre as demais, sendo adotada por uma importante parte dos cientistas, ao mesmo tempo que outros, sentindo-se incompreendidos e derrotados, abandonam definitivamente a profissão. Um novo paradigma se impõe e, com ele, um novo período de ciência normal começa.
É a incompreensão mútua entre os protagonistas do velho e do novo paradigmas que leva uns a abandonar a ciência e outros a converter-se ao novo. Isto porque, diz-nos Kuhn, fazer ciência a partir de paradigmas diferentes é o mesmo que ver coisas diferentes quando se olha para o mesmo sítio. Por isso ele afirma que os paradigmas são, em grande medida, incomensuráveis. Isto significa que eles não podem sequer ser comparados. Há, assim, um corte radical com o paradigma anterior.
Dada a caracterização que Kuhn faz da ciência, seria incorreto concluir que a ciência é uma atividade inteiramente racional: uma vez que os cientistas trabalham de maneiras diferentes consoante o paradigma, e que mudar de paradigma é algo equivalente a uma conversão religiosa, acabam por estar em jogo as mais diversas motivações pessoais, sociais e profissionais. Trata-se de maneiras radicalmente diferentes e incompatíveis de fazer ciência e até de entender o mundo. Se houver racionalidade, então esta será relativa a um paradigma, pelo que não pode haver uma racionalidade que permita caracterizar toda a ciência; quando muito, haverá múltiplas formas de racionalidade incompatíveis entre si.
A escolha de teorias
Também seria incorreto, de acordo com Kuhn, afirmar que a ciência é objetiva. Por exemplo, quando há competição de teorias, como nos períodos de ciência extraordinária, os cientistas acabam por seguir algum critério de decisão. Kuhn admite que pode haver critérios objetivos, partilhados pelos cientistas, como os da exatidão, da simplicidade, da consistência e outros. Contudo, Kuhn sublinha que os mesmos critérios dão frequentemente origem a decisões opostas. E isto sucede porque, movidos pelos mais diversos interesses e factores subjetivos, eles podem interpretar ou hierarquizar os mesmos critérios de formas diferentes. Assim, do facto de haver critérios objetivos não se segue que a ciência seja totalmente objetiva.
Mudança de paradigma e incomensurabilidade
A ideia de que os paradigmas são incomensuráveis aponta também no sentido de que não há objetivamente melhores razões para preferir um paradigma a outro, pois isso equivaleria a compará-los. Deste modo, o avanço da ciência não consiste, ao contrário do que pensa Popper, numa progressiva aproximação da verdade. Mas isso levanta o problema de saber se há realmente progresso científico e, caso haja, como progride a ciência. Kuhn responde que o próprio facto de se abandonar um paradigma e se aderir a outro é em si mesmo um progresso, caso contrário os cientistas não teriam abandonado um e aderido ao outro. Se essa é a preferência e a decisão dos cientistas, então só pode ser por eles encarada como um progresso.
Em resumo:
- Ao contrário de Popper, que encara a ciência de um ponto de vista estritamente lógico, a abordagem de Kuhn pretende ser abrangente, do ponto de vista histórico e sociológico.
- Para Kuhn, a história da ciência caracteriza-se pela alternância de longos períodos estáveis de ciência normal e de curtos e conturbados períodos de ciência extraordinária: a ciência normal obedece a um paradigma; na ciência extraordinária há uma ausência de paradigma.
- Ocorrem revoluções científicas no decurso das mudanças de paradigma que encerram os períodos de ciência extraordinária. De acordo com Kuhn, os paradigmas são incomensuráveis, correspondendo a diferentes formas de ver o mundo
- A escolha entre teorias rivais não é totalmente racional, pois a aplicação de eventuais critérios objetivos acabará por depender de fatores subjetivos.
- A incomensurabilidade leva a conceber o avanço da ciência de modo a que este não consista numa suposta aproximação da verdade.
Temas
Ficha Técnica
- Título: Kuhn sobre a racionalidade e a objetividade científicas
- Área Pedagógica: Filosofia
- Tipologia: Explicador
- Autoria: Aires de Almeida
- Ano: 2020
- Imagem: By http://www.molwick.com/en/scientific-methods/041-scientific-methodology.html, Fair use, https://en.wikipedia.org/w/index.php?curid=33728444