Aurélia de Souza: ser mulher artista em 1900
Este autorretrato é uma obra-prima, contudo só foi reconhecido como tal muitas décadas depois de ter sido pintado, por volta de 1900. Porque, nesse tempo, as mulheres continuavam a não ser valorizadas enquanto artistas, a não ter direito ao seu espaço de liberdade criativa. Aurélia de Souza desafiou convenções e dedicou-se inteiramente à sua arte. Mas apesar da qualidade dos desenhos e das pinturas, a crítica nunca a colocou ao mesmo nível dos outros grandes nomes da sua geração.
A força deste retrato está no olhar, frontal, de uma mulher que tem consciência que é artista, que se “conhece a si própria, ao mesmo tempo que se dá a conhecer”. Aurélia de Souza representou-se para afirmar a sua identidade e independência numa sociedade dominada por homens. Republicana, feminista sem ser ativista, desafiou as tradições do sistema patriarcal. Em vez de “reprodutora escolheu ser criadora”. Venceu resistências familiares, estudou Belas-Artes em Paris, viajou pela Europa, ganhou mundo.
Nesta viragem para o século XX, quando a pintura feita por mulheres tinha pouca ou nenhuma visibilidade, Aurélia de Souza aspirava a uma carreira artística. Tinha feito o percurso académico, estudado com grandes mestres, tinha o talento e condições económicas para se dedicar à pintura e ao desenho. Os seus trabalhos revelavam inquestionável qualidade, mas a exposição nos mercados de arte eram uma limitação. Columbano Bordalo Pinheiro, um dos mais importantes nomes da pintura deste período, à época diretor do Museu do Chiado, reconheceu-lhe o mérito, comprou-lhe um quadro – No Atelier – porém, nunca o chegou a expor.
Por toda a Europa, “a crítica de arte era irónica e malévola para com estas mulheres”, desvalorizava-as e tratava-as como amadoras. Com receio do ridículo, a pintora manteve-se discreta, longe da esfera pública e do meio artístico do Porto, onde era já respeitada. Embora o autorretrato do casaco vermelho seja a sua obra mais icónica (agora em lugar de destaque no Museu Nacional de Soares dos Reis), Aurélia de Souza, que também soube usar a fotografia na construção pictórica, é autora de outros representações suas, intrigantes, e de quadros notáveis que fazem dela um dos grandes nomes da pintura do século XX português.