Vieira da Silva: uma lição de pintura
Aprendeu a desenhar o corpo humano nas aulas da escola de Medicina. Músculos e ossos representados na perfeição. Mas é o esqueleto, a estrutura, que prende a atenção da estudante. Um olhar para dentro, além da superfície das coisas. Centrada nas abstrações, Maria Helena Vieira da Silva, começou então a desconstruir e a construir a anatomia de um novo mundo. Tão único, tão original que fez dela a mais aclamada artista portuguesa do seu tempo.
Complexa, labiríntica, densa, intensa. A pintura de Maria Helena Vieira da Silva abre o mundo como se fosse um corpo humano, disseca-o em camadas misteriosas, num ritmo vertiginoso e poético. A obra ergue-se, emerge lentamente de lugares escondidos e não deixa ninguém indiferente. A malha urbana que tece nas telas, repetitiva, a baralhar perspetivas, seduz. Logo a seguir à II Grande Guerra, os museus mais importantes compram-lhe quadros, o seu nome fica reconhecido como um dos maiores das artes plásticas.
O destino artístico de Maria Helena Vieira da Silva estava traçado desde a adolescência. Estuda pintura, desenho, escultura, música. Em 1928 vai para Paris aprofundar técnicas, conhecimentos. Conhece o também pintor Arpad Szenes e começa uma extraordinária história de amor e cumplicidade e partilha estética que só terminará quando a morte decide intrometer-se entre os dois. Por causa dele, só regressará definitivamente a Portugal depois da queda da ditadura. Porque o governo de Salazar negara-lhes, a si e ao seu marido, judeu húngaro, convertido ao catolicismo, a nacionalidade portuguesa quando era urgente ficar a salvo da ameaça da guerra e das perseguições nazis.
O que vem a seguir é o exílio no Rio de Janeiro, um período doloroso, de medos, inquietações, saudades de casa. Emoções, estilhaços que a pintora apanhava e transferia para as telas, como um diário da vida interior e do terror que se abatia sobre a Europa. Apesar das adversidades, foi nestes anos que realizou algumas das obras mais importantes, refere Marina Barão Ruivo, diretora do museu Arpad Szenes Vieira da Silva. Um desses trabalhos é este jogo de xadrez, o tabuleiro da guerra que deforma a realidade, onde o figurativo e a abstração se misturam e confrontam em múltiplos quadradinhos e losangos, indissociáveis do léxico pictórico de Vieira da Silva.
A Lisboa, o espaço que a habita, regressa definitivamente depois do 25 de Abril. À casa que é sua, onde vivera com a mãe, depois regularmente com Arpad, antes do exílio. Esta casa-atelier no número 3 do Alto de São Francisco, perto do Jardim das Amoreiras, onde em 1936 se realizara a primeira exposição de arte abstrata em Portugal, mantém intactos o espírito e o estilo da pintora: pincéis, cavaletes, tintas, alguns móveis, poucos objetos e a lareira ao fundo. Neste ambiente Vieira da Silva produziu peças tão importantes como “Atelier Lisbonne” e “Composition”, obras que podem ser vistas ao lado, na antiga Fábrica dos Tecidos da Seda, o edifício que escolheu para guardar memórias e pinturas. Para esta Fundação, criada em 1990, dois anos antes de morrer, exige que o nome de Arpad Szenes figure antes do seu.