“Acidentes de Percurso”, de Gabriel O Pensador
Nas palavras e no som que elas têm, Gabriel O Pensador encontra inspiração para ser o músico que é. Este rapper brasileiro com uma imensa legião de seguidores, cedo descobriu o impulso de escrever. Para questionar, criticar, denunciar. Pensamentos e mensagens que transporta para as suas letras faladas e outras poesias. Com ritmo, é ele que entra em palco neste episódio do programa "Voz". Um encontro com a poesia para ver, ouvir e ler, aqui.
Acidentes de Percurso
Será que o meu defeito
é essa curiosidade?
Ou será que esse defeito
é a minha maior qualidade?
Acidentes de percurso
eu também já tive
Minha vida é uma estrada
que tem longos trechos em declive
E na neblina dessa pista
com a vista turva
A gente vive
e morre um pouco
em cada curva assassina
Sina tortuosa me tortura
em linha reta
Tento conduzir minha loucura
de forma discreta
Leio placas de censura
no meu lado direito
Tento contornar os meus desvios
com freios no peito
Será que o meu defeito
é não me dar por satisfeito?
Ou será esse defeito
o que me faz viver
com mais proveito?
Faço bom proveito das miragens
Traço meu roteiro
mas me perco mirando a paisagem
Ando viajando à margem do rio
cheio de bobagem na bagagem
mas quase vazio
se eu ando pela sombra
Eu sinto frio
se eu ando pelo sol
a luz revela o meu lado sombrio
a luz me segue e me cega
Eu atropelo a própria vida
caída no meio fio
feito um cão vadio
bicho arredio no cio
vida cadela
cadáver de um cavalo sem sela
que a gente atropela
que a gente atropela
e vice-versa
A vida ainda é bela quando a gente conversa
Será a solidão um mal real ou imaginário
não é preciso estar sozinho para se sentir solitário
Será que o meu defeito é ter nascido pisciano
ascendente em aquário
medo de rede e sede de oceano?
Lanço perguntas ao vento
talvez o tempo responda
Faço mil planos
mas me perco observando as ondas
como elas vêm em bando
mas são únicas
quebrando cada uma de uma vez
na vez de cada uma
como elas vêm dançando
independentes
e são tão diferentes
mas se igualam quando viram espuma
As ondas são mais sábias do que a gente
viajam sempre em frente
A gente tenta mas não se acostuma
A gente roda
e quase sempre se engana redondamente
embora normalmente não assuma
A gente normalmente não assume
pra quê assumir um erro
se é tão fácil pôr a culpa em todo o mundo?
Pois todo o mundo erra
e os erros vêm como um cardume
um erro puxa o outro nos puxando lá pró fundo
A vida ainda é bela se eu converso
mas como conversar se eu mal respiro aqui
assim, tão submerso?
Tanta pressão nos ouvidos
pressão na caixa torácica
Ouço ruídos que me lembram música clássica
mas são golfinhos chorando
talvez baleias
me vendo em baixo d´água à deriva
com águas-vivas nas veias
queimando o sangue que o meu fraco coração bombeia
enquanto no pulmão o ar vencido me esfaqueia
no meu estômago passeia uma moreia
O meu mergulho é raso
mas tem longos trechos em apneia
na maré cheia ideias rasas
não são raras
ideias rasas ganham asas
ninguém as para
ideia errada às vezes pode até dar certo
fazendo a alegria de um otário
que se acha esperto
mas quando a maré cheia vaza
e a onda passa
aquela ideia errada de engraçada
passa a ser desgraça
qualquer iate um dia vai virar carcaça
e na mudança da maré
é que o esperto volta a ser mané
Gabriel o Pensador
Temas
Ficha Técnica
- Título: "Voz"
- Tipologia: Programa de Poesia
- Autoria: Produções Fictícias
- Produção: até ao Fim do Mundo
- Ano: 2005